Curar implica ajudar a descobrir o “sentido”

Preconizar um modelo assistencial que tenha espiritualidade cristã um dos seus pontos fortes permite pensar o ser humano sem estreiteza de horizontes. Mais, a assunção de uma antropologia não encerrada apena na e pela razão positiva abre a possibilidade de a pessoa ser mais — é também aquilo que acolhe —, e de dar mais do que tem — dá aquilo que recebeu e incorporou na sua existência, lhe deu sentido.

Luís M. Figueiredo Rodrigues

É relativamente recente a abordagem do problema do sentido como uma questão separada. A normalidade era considerar que a referência sobre o ser implicava, necessariamente, a referência ao sentido. Na metafísica clássica, o que se considerava ser era o que por sua vez possuía sentido, de tal modo que o ser e sentido deste equivaliam aproximadamente à mesma coisa.

Atualmente, a questão do sentido une todas as pessoas; é a profunda inquietação sobre o sentido da vida, em que toda a Humanidade está unida. A interrogação sobre a condição humana revela o ser humano como uma interrogação para si mesmo.

Perante o sofrimento, de que a morte é o maior expoente, e o problema do antes e do depois, não se pode deixar de colocar a questão do sentido. E quando a sede de sentido se agudiza, pode chegar-se ao desespero, ao suicídio como expressão máxima da falta de saúde, de ausência de sanação.

A postura que defendemos reconhece o ser-humano como sedento de absoluto, que não se realiza apenas nesta vida, sem, contudo, negar a possibilidade de se realizar. Perante a morte, a radicalidade do problema humano faz emergir na consciência a aspiração que o habita: realizar-se infinitamente. «Queria era sentir-me ligado a um destino extrabiológico, a uma vida que não acabasse com a última pancada do coração», escreve Miguel Torga.

A partir da morte pode reconhecer-se, também, a impotência dos seres-humanos para construírem sozinhos a sua realização: «O homem é um animal compartilhante. Necessita de sentir as pancadas do coração sincronizadas com as doutros corações, mesmo que sejam corações oceânicos, insensíveis a mágoas de gente. Embora oco de sentido, o rufar dos tambores ajuda a caminhar. Era um parceiro de vida que eu precisava agora, oco tambor que fosse, com o qual acertasse o passo da inquietação» (Miguel Torga). É aqui se abrem duas hipóteses: ou se reconhece que a vida terrena — projeto e aspiração a ser mais — tem sentido e abre a possibilidade da esperança de um futuro transcendente; ou aceita que a vida não tem sentido e é o desespero total.

A descoberta do sentido para a vida, integrando o sentido do sofrimento, revela a precariedade e a finitude de uma vida sobre a qual assenta o desejo de absoluto que se espera. É a descoberta da liberdade ansiada, aquela que se tem devido a uma liberdade transcendente. O desejo de liberdade infinita dá lugar à descoberta da condição de possibilidade da liberdade humana: Deus. A realização humana surge a partir do ser pessoa, da relação.

Mas o sentido é um dom, oferecido pelo mistério do Verbo encarnado. O mistério trinitário é o “mistério iluminador” do sentido. A expressão desse mistério faz-se pela vivência da comunhão, onde o ser «não sem os outros» (Michael de Certaux) impele para a solidariedade e para o diálogo. Miguel Torga, continuamos com ele,  escreve que «a Bíblia, o livro dos livros, nos ensina que não há homem sem homem, e que o próprio Cristo teve, a caminho do Calvário, a fortuna dum cireneu para o aliviar do peso da cruz (a dor incurável da solidão). Para mim, pelo menos, feito dum barro tão frágil e vulnerável, que necessito de ser amado durante a vida e acalentar a esperança de continuar a sê-lo depois da morte».

O evento Jesus Cristo é o mediador do sentido, o único intérprete autêntico do ser-humano. 

Preconizar um modelo assistencial que tenha espiritualidade cristã um dos seus pontos fortes permite pensar o ser humano sem estreiteza de horizontes. Mais, a assunção de uma antropologia não encerrada apena na e pela razão positiva abre a possibilidade de a pessoa ser mais — é também aquilo que acolhe —, e de dar mais do que tem — dá aquilo que recebeu e incorporou na sua existência, lhe deu sentido.

sanação, como conceito teológico basilar para compreender a missão da Hospitalidade, não só permite, como obriga, a que exista uma prática antropológica equilibrada, digamos sanada, para que a hospitalidade seja sanante, para curadores e curados! 

Viver em comum começa por acolher

Luís M. Figueiredo Rodrigues

O crente sabe-se e sabe o mundo como crente quando se aceita e aceita o mundo como originados e não como origem e fim em si mesmos, por isso o saber do crente é um saber de esperança

Nos tempos que correm, fortemente influenciados pela modernidade já superada, as tradições são postas em causa, pois crê-se que com o progresso científico-técnico o ser humano, recorrendo apenas à razão, pode encontrar em si, e de forma autónoma, a totalidade das suas motivações e, por isso, todo o conhecimento. Mas isto, que é um preconceito contra a tradição, redunda na negação daquilo que quer afirmar: não há lugar à verdade, mas sim à ideologia, com a consequente perda de liberdade e a desumanização. 

O saber em si não é o que acontece primeiro, nem o fundamento último de tudo, pois o saber da possibilidade de saber, que o mundo existe e habitamos nele, que a linguagem me permite interagir no e com o mundo e falar a outros deste mundo, não se sabe nem se demonstra, antes crê-se. O que implica que, antes de qualquer operação de interação e conhecimento, o ser humano recebe uma linguagem, sobretudo da sua cultura e do seu contexto, que lhe oferece uma estrutura possibilitadora de tudo o demais. O «pensar» absolutamente subjetivo, sem recurso a nada exterior, não é possível. 

Wittgenstein refere o «leito da fé» para significar tudo o que precede o indivíduo e que o sujeito terá de acolher, como condição de possibilidade da sua mesma subjetividade. Ou seja, em termos epistemológicos, o crer antecede o saber e o fazer. A confiança pessoal e a linguagem cultural são, então, a condição imprescindível para que o ser humano seja o que é, tenha um sentido e um percurso vital. Claro que somos livres: podemos rejeitar, transformar, assimilar e transmitir criativamente o que recebemos, mas só se primeiro acolhermos. A dinâmica da construção da identidade própria implica todas as dimensões do ser humano, onde a dimensão crente — que acolhe o dom oferecido — é a mais ampla, originária e fundamental.

A transmissão de verdades mais não é que o reconhecimento de que o ser humano é um ser da tradição, sendo esta constitutiva da cultura humana, na medida em que acolhe, transmite, destrói e cria tradições, ou melhor, reorganiza e faz evoluir a tradição. As verdadeiras tradições assumem um processo libertador e orientador, já que diante de uma multidão de possibilidades de perceber, pensar e agir que pode paralisar o homem, coloca-lhe à disposição determinados modelos ou guiding patterns de perceber, pensar e agir, bem como um ambiente comunitário gerador de instâncias de controle e garantes da tradição normativa, num determinado contexto cultural. Este processo é evolutivo porque constituído, em simultâneo, pelos transmissores e pelos recetores que, posteriormente, se assumem também como transmissores.

Este processo afeta a personalidade, pois o facto de um indivíduo estar numa determinada comunidade fundada na tradição, e de esta o influenciar, significa duas coisas: que a tradição possibilita o desenvolvimento da individualidade e que pode também atrofiar o desenvolvimento livre. A tradição, como destino e desafio, postula a assimilação livre e inteligente da tradição, com a consequente atitude crítica, pois a assimilação pessoal é sempre interpretação. Esta resulta da interação daquilo que é transmitido, ou ensinado, com as experiências pessoais, o que sintetiza a possibilidade de continuidade da transmissão e a sua inovação. Razão pela qual há sempre latente uma certa conflitualidade nestes processos.  

É neste contexto que considera a transcendência na reflexão sobre o conceito de “casa comum” nos liberta e faz com que cada cultura particular seja criadora e libertadora de todo o sentido. A possibilidade de sermos interpelados de forma absoluta, com a constituição de uma certeza fundamental, ou uma base sobre a qual se possa construir todas as outras dimensões, é posta de parte pela maioria dos pensadores da pós-modernidade. É certo que a transcendência, porque transcende, só pode ser apreendida por cada pessoa no aqui e agora da sua história, por isso limitado e incompleto. Mas é parte integrante do acreditar a aceitação dessa finitude, que nos determina como seres de acolhimento e não como donos e senhores da realidade. O crer inaugura uma dimensão excessiva em relação à produção de sentido. Na dinâmica do crer, o sentido, mais do que produzido, é acolhido.

Na sua aceção mais genérica, crente é todo aquele que reconhece, contempla, espanta-se e aceita este estatuto de «ser mistério». Aceita que o dom originário, embora compreendido e aceite no seu âmago e nas suas consequências, nunca será totalmente captado e dominado pelos saberes humanos: apenas poderá ser acolhido como algo imerecido e, ao mesmo tempo, excessivo em relação a tudo o que sabe e faz.
O ser humano crente é o que sabe como crente, sabe o mundo e o sentido de forma crente, por isso age como crente. O crente sabe-se e sabe o mundo como crente quando se aceita e aceita o mundo como originados e não como origem e fim em si mesmos, por isso o saber do crente é um saber de esperança. E porque se descobre e acolhe como dom gratuito, dá-se aos demais de forma gratuita, com fundamento fora de si — no Outro — pelo que o saber crente gera a ação caritativa, promotora da Casa Comum.