vivemos num ecossistema convergente, onde a autoridade se constrói performativamente, pela capacidade de gerar atenção e confiança.

1. Introdução: o horizonte pós-digital da reflexão teológica
A teologia contemporânea encontra-se diante de uma mutação civilizacional que desafia não apenas os seus conteúdos, mas a própria forma do seu exercício. A revolução digital, outrora vista como um domínio técnico ou comunicacional, tornou-se o ambiente vital em que se tece a experiência humana, social e religiosa. O termo “pós-digital” exprime precisamente esta condição em que o digital deixou de ser novidade ou ferramenta, tornando-se estrutura invisível e omnipresente do quotidiano.[1] Já não se trata de pensar a internet, mas de pensar a partir de um mundo digitalizado, onde o humano e o tecnológico se entrelaçam numa ecologia híbrida.
Neste contexto, o teólogo é desafiado a reencontrar o sentido público da sua vocação: habitar a rede como espaço teológico. A digitalização da vida, ao descentrar as formas tradicionais de mediação, coloca em questão categorias clássicas de autoridade, comunidade e presença. A teologia, se quiser continuar a ser palavra viva, deve reconhecer que o digital não é apenas um canal, mas um lugar teologal— um “território existencial” onde o Espírito pode ser escutado através de novas linguagens, afetos e mediações.[2]
2. O pós-digital como contexto teológico
O conceito de pós-digitalidade situa-se além da dicotomia entre o “real” e o “virtual”. Conforme argumenta David Berry (2014), vivemos num regime de mediação contínua em que o digital se tornou o “ar que respiramos”.[3] Esta hibridização dissolve fronteiras entre presença física e presença em rede, exigindo uma reconfiguração antropológica: o sujeito crente é também um homo digitalis, atravessado por fluxos de dados, imagens e interações mediadas.
A teologia, como hermenêutica da experiência crente, não pode permanecer alheia a esta condição. Antonio Spadaro, já em 2011, antecipava esta deslocação quando propôs uma “ciberteologia”, isto é, uma reflexão que interprete a fé cristã à luz da cultura digital, evitando tanto a tecnofobia quanto a idolatria tecnológica.[4] Para Spadaro, a rede introduz uma gramática relacional — participativa, colaborativa, descentralizada — que ressoa com a própria lógica da comunhão e da encarnação. Contudo, esta hermenêutica otimista necessita de ser complementada com uma crítica mais aguda às dinâmicas de poder algorítmico e plataformização, que configuram novas formas de vigilância e de colonização simbólica.[5] A teologia pós-digital é, por isso, simultaneamente contemplativa e crítica, reconhecendo que o digital é lugar de revelação e de disputa.
3. Teologia vivida e participação digital
O deslocamento do digital para o centro da experiência quotidiana exige que a teologia se torne uma teologia vivida nos espaços em rede. Esta noção, amplamente trabalhada na teologia atual,[6] valoriza a fé enquanto prática encarnada, discernida a partir da vida das pessoas e não apenas das formulações dogmáticas.[7] Aplicada ao ambiente digital, significa escutar as narrativas, gestos e símbolos através dos quais os crentes constroem sentido e presença online.
Heidi Campbell descreve esta realidade como religião de rede, caracterizada por cinco dimensões: comunidade em rede, convergência multimédia, mudança de autoridade, prática remixada e presença multisituada.[8] Estas dimensões desafiam a teologia a reconhecer que o espaço digital é não apenas campo de evangelização, mas locus theologicus, onde emergem novas formas de discipulado, solidariedade e discernimento.
A teologia vivida em contexto digital, portanto, não é mera adaptação pastoral. É um método de escuta que lê o digital como expressão da busca de sentido humano. Deste modo, o digital torna visível o religioso difuso da modernidade tardia.[9] As práticas de partilha, a construção de identidades online e a circulação de afetos espirituais são fenómenos que pedem interpretação teológica, não condenação apressada. A pergunta desloca-se: não é se Deus pode estar na internet, mas como o reconhecimento do divino se manifesta através das mediações tecnológicas.
4. A crise e a reinvenção da autoridade religiosa
Um dos pontos nevrálgicos da teologia pós-digital é o das formas contestadas de autoridade. A estrutura tradicional da autoridade eclesial — vertical, clerical e institucional — encontra-se em tensão com a lógica horizontal e participativa da cultura digital. A emergência de novos mediadores de autoridade — influenciadores, criadores de conteúdo, plataformas e mesmo inteligências artificiais — redistribui a legitimidade espiritual e cognitiva.[10] Como nota Henry Jenkins, vivemos num ecossistema convergente, onde a autoridade se constrói performativamente, pela capacidade de gerar atenção e confiança.[11]
Esta reconfiguração não significa o desaparecimento da autoridade religiosa, mas a sua transformação comunicacional. O monopólio institucional cede lugar a uma pluralidade de vozes e práticas de discernimento, exigindo novas formas de literacia teológica e digital. O teólogo é chamado a repensar o conceito de magistério em chave relacional: a autoridade deixa de ser vista como um poder de imposição para se tornar em competência de escuta e mediação.
Régis Debray, no quadro da sua mediologia, já havia advertido que toda a autoridade religiosa depende dos dispositivos de transmissão que a sustentam.[12] A digitalização, ao modificar as infraestruturas de mediação simbólica, altera o próprio regime de autoridade. A questão não é apenas “quem fala em nome de Deus?”, mas “através de que mediações e com que gramática se reconhece a palavra divina?”. A teologia digital não pode eludir esta dimensão material: a infraestrutura é também teológica, pois molda a forma do crer e do comunicar.[13]
5. Eclesiologias em rede e a lógica da comunhão
A pós-digitalidade obriga igualmente a repensar a eclesiologia. O paradigma da “igreja pós-digital” propõe deslocar o foco da instituição para as realidades vividas dos utilizadores, observando como estes constroem sentido de pertença e missão no quotidiano mediado. Esta mudança implica uma passagem de estruturas hierárquicas para formas rizomáticas de comunhão, mais próximas da lógica da rede do que da pirâmide. [14]
O desafio eclesial consiste em integrar esta fluidez sem abdicar do discernimento comunitário, o que exige uma teologia da presença distribuída, capaz de reconhecer a graça nas interações digitais e de promover a corresponsabilidade. A autoridade partilhada não é ausência de critério, mas reconhecimento de que o Espírito atua também através da diversidade e da colaboração. Assim, as redes digitais podem ser compreendidas como parábolas tecnológicas da comunhão: lugares onde a interconexão humana revela, ainda que fragmentariamente, a vocação relacional da fé.[15]
6. Sabedoria teológica e discernimento algorítmico
O contexto pós-digital requer uma nova sabedoria teológica, capaz de unir discernimento espiritual e literacia tecnológica. As éticas tradicionais já não são suficientes para lidar com os dilemas das plataformas, da inteligência artificial e da vigilância de dados. O teólogo deve aprender a ler criticamente os algoritmos como “estruturas de mediação moral”, analisando como estes influenciam perceções do bem, da verdade e da liberdade.[16]
Neste sentido, a teologia digital tem uma dimensão profética: denunciar as formas de idolatria tecnológica e propor caminhos de justiça e cuidado. A crítica à “colonização algorítmica” não se opõe à espiritualidade digital, mas orienta-a para uma ecologia integral da comunicação, onde o humano e o tecnológico se reconciliam numa ética de atenção e responsabilidade. A teologia torna-se, assim, uma forma de data ethics from within, que escuta as vozes marginalizadas e reclama espaço para a vulnerabilidade, a gratuidade e o mistério.[17]
7. Conclusão: teologia como presença e cocriação
Responder ao desafio do teólogo em tempos pós-digitais é mais do que atualizar métodos: é reconfigurar a própria imaginação teológica. A teologia não é chamada a colonizar o digital com linguagem religiosa, mas a reconhecer que o digital é já uma das linguagens do Espírito. Habitar as redes com lucidez e empatia é participar na cocriação do mundo, discernindo aí os sinais de transcendência que emergem da comunicação humana.
Neste horizonte, o teólogo é mediador entre tradições e mediações, entre sabedoria antiga e cultura de rede. A sua tarefa é dupla: contemplar e traduzir. Contemplar o mistério de Deus que se comunica através de dispositivos humanos, e traduzir essa comunicação em linguagem inteligível para o nosso tempo. O digital não é o fim da teologia, mas o seu novo campo de encarnação: um espaço onde a Palavra continua a fazer-se carne, agora em forma de código, imagem e interação.
Bibliografia
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[1] Petar Jandrić et al., «Postdigital Science and Education», Educational Philosophy and Theory 50, n.o 10 (2018): 895–97, https://doi.org/10.1080/00131857.2018.1454000.
[2] cf. Heidi A. Campbell e Ruth Tsuria, eds., Digital Religion: Understanding Religious Practice in Digital Media, 2.a ed. (London: Routledge, 2021), 12–15, https://doi.org/10.4324/9780429295683.
[3] Cf. David M. Berry, Critical theory and the digital (New York: Bloomsbury, 2014), 98–100.
[4] cf. Antonio Spadaro, Cyberteologia: Pensare il cristianesimo al tempo della rete (Milano: Vita e Pensiero, 2011).
[5] Cf. Nick Couldry e Ulises Ali Mejias, The costs of connection: how data is colonizing human life and appropriating it for capitalism(California: Stanford University Press, 2019), 10–83.
[6] Cf. Christopher Valencia, «The Limits of Vocabulary: Centering Lived Theology, Lived Religion, and Worldviews to Decolonize Christianity», Religious Studies Review 51, n.o 2 (2025): 477–81, https://doi.org/10.1111/rsr.17907.
[7] Cf. R. Ruard Ganzevoort e Johan Roeland, «Lived Religion: The Praxis of Practical Theology», International Journal of Practical Theology 18, n.o 1 (junho de 2014): 91–101, https://doi.org/10.1515/ijpt-2014-0007.
[8] Cf. H. A. Campbell, «Understanding the Relationship between Religion Online and Offline in a Networked Society», Journal of the American Academy of Religion 80, n.o 1 (2012): 64–93, https://doi.org/10.1093/jaarel/lfr074; Heidi Campbell, When Religion Meets New Media(New York: Routledge, 2010).
[9] Cf. João Paulo de Paula Silveira e Flávio Munhoz Sofiati, «As novas religiões na contemporaneidade: a propósito da modernidade religiosa tardia», Revista Sapiência: sociedade, saberes e práticas educacionais 6 (2017): 51–67.
[10] Cf. Heidi A. Campbell, ed., Digital Religion: Understanding Religious Practice in New Media Worlds (New York: Routledge, 2013).
[11] Cf. Henry Jenkins, Convergence culture: Where old and new media collide (New York: New York University Press, 2006), 2–25.
[12] Cf. Régis Debray, Cours de médiologie générale (Paris: Gallimard, 1991).
[13] Cf. Luís M. Figueiredo Rodrigues, O digital no serviço da fé: Formar para uma oportunidade (Lisboa: Universidade Católica Editora, 2016), 187–209.
[14] Cf. Sabrina Müller e Aline Knapp, «The Postdigital Church», em Postdigital Ethical Futures, por Maggi Savin-Baden e Maria Power (Boca Raton: Chapman and Hall, 2025), 55–66, https://doi.org/10.1201/9781003497950-7.
[15] Cf. Peter M. Phillips, «Digital theology and a potential theological approach to a metaphysics of information», Zygon: Journal of Religion and Science 58, n.o 3 (2023): 770–78, https://doi.org/10.1111/zygo.12883.
[16] Cf. Kate M. Ott, Sex, tech, and faith: ethics for a digital age (Michigan: William B. Eerdmans Publishing Company, 2022), Introduction; Ximian Xu, «A Theological Account of Artificial Moral Agency», Studies in Christian Ethics 36, n.o 3 (2023): 642–59, https://doi.org/10.1177/09539468231163002.
[17] Cf. Couldry e Mejias, The costs of connection, 37–68.