Shalom

O conceito bíblico de shalom é de tal modo vasto e denso que qualquer tentativa de o reduzir ao mero entendimento moderno de “paz”, como ausência de conflito ou tranquilidade superficial, empobrece gravemente a sua verdadeira espessura teológica e antropológica. Shalom, no universo simbólico da Escritura, exprime antes uma plenitude ontológica e relacional, uma harmonia original que abrange o ser humano em todas as suas dimensões — corporal, espiritual, comunitária e cósmica — e o reconcilia com o Criador. Na matriz hebraica, esta paz não se opõe apenas à guerra, mas à fragmentação do ser, à perda do sentido, à ausência de comunhão. É, pois, um termo que, inserido na lógica da revelação, aponta para a integridade do humano enquanto vocacionado à aliança com Deus.

À luz desta visão, shalom pode — e deve — ser compreendido também como categoria hermenêutica para a reflexão sobre a saúde mental, entendida aqui não em termos estritamente clínicos ou funcionais, mas enquanto expressão do equilíbrio profundo que advém da reconciliação interior e da pertença. A saúde mental, iluminada por esta perspectiva, transcende a ausência de patologia e revela-se como vivência harmoniosa da existência, onde afectividade, razão e espiritualidade se entrelaçam numa tensão fecunda. A perturbação psíquica — seja sob a forma de ansiedade, depressão ou outros sofrimentos do foro emocional — pode ser entendida, neste quadro, como expressão de uma desordem ontológica, de um hiato entre o ser e a sua vocação à comunhão.

Mas o shalom é também uma realidade eminentemente relacional: implica a justiça, a misericórdia, a escuta e o perdão. A restauração da saúde mental não se pode operar, pois, apenas no plano individual; ela requer o tecido vivo das relações, a hospitalidade da comunidade, o acolhimento da alteridade. Em contexto pastoral, isto exige que a Igreja se configure como espaço terapêutico e reconciliador, onde os vínculos — tantas vezes feridos ou ausentes nas biografias de sofrimento — possam ser novamente tecidos. Não se trata apenas de cuidar, mas de formar ecologias de cuidado, de animar comunidades onde a presença do Espírito se manifeste em gestos concretos de proximidade, escuta e partilha. Assim, o cuidado da saúde mental torna-se, ele próprio, um acto sacramental, mediador da graça e expressão do Reino.

Por fim, shalom é também promessa: antecipação escatológica do Reino definitivo, do tempo em que “Deus será tudo em todos” (1Cor 15,28). Neste horizonte, mesmo as feridas mais profundas podem ser revisitadas à luz da esperança. A fé cristã não promete a ausência de dor, mas a sua transfiguração; não nega o sofrimento, mas proclama que ele não terá a última palavra. A ressurreição de Cristo, ápice do shalom oferecido, é garantia de que nenhuma história está condenada ao fracasso, e de que mesmo no caos há sinais discretos da plenitude que há-de vir.

Assim, pensar a saúde mental a partir de shalom é reconhecer que o sofrimento psíquico interpela não apenas a ciência, mas também a teologia e a pastoral. É admitir que o cuidado do ser humano exige uma visão integrada, enraizada na fé e na esperança, capaz de acompanhar cada pessoa no seu caminho de reconciliação — com Deus, com os outros e consigo própria. Trata-se, em última análise, de formar comunidades onde a fragilidade não seja estigma, mas lugar teológico; onde se possa entrever, ainda que a partir das ruínas, a possibilidade real da plenitude.

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