Práticas emergentes: da manutenção à gestação

«Também publicanos vieram para serem batizados e disseram-lhe: “Mestre, que devemos fazer?” Ele respondeu-lhes: “Não exijais mais do que o que vos foi estabelecido.” Também alguns soldados o interrogaram: “E nós, que devemos fazer?” Ele disse-lhes: “A ninguém trateis com violência, não façais denúncias falsas e contentai-vos com o vosso soldo.”» (Lc 3,12-14)

© Julie Mehretu, Stadia II, 2004.

Lança-se, nesta comunicação, uma proposta de reconfiguração da Teologia Prática a partir de uma tese simples: o Reino de Deus não se constrói; vive-se. Tal deslocação semântica — do “construir” para o “viver” — reabre a gramática bíblica do dom e recentra a prática eclesial nos mecanismos gestativos pelos quais a fé toma corpo em comunidades concretas. Para tornar operativa esta tese, convocam-se quatro pilares conceptuais que se articulam sucessivamente: primeiro, uma clarificação rigorosa do conceito de emergência nas ciências dos sistemas; segundo, a releitura eclesiológica da Igreja como realidade incessantemente emergente; terceiro, a consequência teológica de compreender o Reino como vida recebida e acolhida, mais do que obra edificada e expandida; quarto, a assunção do dissenso como mecanismo de aprendizagem comunitária e de reorganização criativa, em chave sinodal. O fio condutor é metodológico: menos fixação no produto final “Igreja instituída”, mais atenção aos processos micro que geram pertença, continuidade e missão.

1. Gramática da emergência nas ciências da complexidade

Comece-se pelo léxico da emergência. Nas ciências da complexidade, a emergência não designa uma ocorrência indecifrável, mas uma família de fenómenos em que padrões macroscópicos irredutíveis às propriedades de cada elemento surgem de interações locais, geralmente orientadas por regras simples. O todo é, aqui, mais do que a soma das partes não por acréscimo quantitativo, mas por ganho qualitativo: propriedades novas emergem ao nível do sistema. A viragem contemporânea consistiu em passar da descrição fenoménica à explicação baseada em mecanismos: o que antes era “caixa negra” pode hoje ser explorado por dispositivos teóricos e metodológicos robustos — modelização, simulação computacional, análise de redes — que permitem ligar recursivamente o micro ao macro. A auto-organização e o controlo descentralizado tornam-se traços distintivos: sem um centro que comande tudo, o sistema aprende, adapta-se e reconfigura-se, estabilizando padrões globais com base em iterações locais. Esta gramática — relação micro/macro, mecanismos concretos, atenção aos limiares de não-linearidade — é particularmente fecunda quando transposta, com as devidas cautelas, para o campo teológico. Em termos simples, “práticas emergentes” nomeiam regularidades novas e coerentes de vida cristã que irrompem de interações situadas — pessoas, Palavra de Deus, lugares, conflitos, cuidados — e que, ao adquirirem continuidade, instituem comunidade.

2. Igreja como realidade emergente: gestos instituintes

Com esta ferramenta, torna-se inteligível a tese eclesiológica de que a Igreja é realidade emergente. Tal afirmação não nega a dimensão institucional, sacramental e histórica da Ecclesia; recusa, porém, a sua absolutização em chave estática. O diagnóstico é conhecido: em muitos contextos ocidentais, a ação eclesial tem sido capturada por uma mentalidade de manutenção — preservar edifícios, salvaguardar serviços, gerir declínios — enquanto se esvai a energia instituinte que gerava pertença, iniciação, missão. Recomeçar, neste horizonte, não é simplesmente reformar organogramas, mas voltar aos gestos instituintes que, desde as origens, fizeram emergir Igreja: o reunir-se em torno da Palavra de Deus que convoca a fé; o anúncio que mobiliza a decisão; a iniciação que introduz na forma cristã da vida; a Eucaristia que dá corpo e envia. A questão decisiva da Teologia Prática centra-se, então, na explicação causal fundada em mecanismo: que condições locais, repetidas com suficiente regularidade, geram vínculos de pertença e hábitos de continuidade? Onde e como a escuta orante das Escrituras, a partilha de vida e a responsabilidade mútua se tornam padrões estáveis, aí a Igreja emerge como realidade viva; onde tais mecanismos se extinguem, resta uma plataforma institucional desabitada.

3. Reino vivido, não construído: o “sacramento secular”

O deslocamento semântico do Reino reforça e radicaliza esta orientação. Na gramática neotestamentária, o Reino de Deus não é um domínio que a comunidade edifica ou expande por sua própria atividade; é uma realidade recebida e um espaço no qual se entra. A Igreja, por isso, não “possui” o Reino, nem o substitui; é seu sinal, testemunha e serva. Quando se reza “venha a nós o vosso Reino”, confessa-se uma disponibilidade ao advento do dom, não a ambição de erigir um edifício religioso. As consequências são teologais e políticas. Teologais, porque o critério da autenticidade passa de indicadores de performance e de volumetria programática para os frutos do Espírito Santo que dão forma ao quotidiano: justiça, paz, alegria… e Políticas, porque o lugar teológico do Reino é o mundo comum — a cidade, o trabalho, a economia, a casa — onde a vida humana, material e espiritual, se entretece. Falar de “sacramento secular” significa, neste contexto, não sacralizar o profano, mas reconhecer que a aliança criatural, trabalhada no tempo, é o horizonte ordinário em que a graça faz o seu caminho: fazer o que se faz, justamente, com fidelidade, e responsavelmente.

No Evangelho de Lucas lê-se: 

«Também publicanos vieram para serem batizados e disseram-lhe: “Mestre, que devemos fazer?” Ele respondeu-lhes: “Não exijais mais do que o que vos foi estabelecido.” Também alguns soldados o interrogaram: “E nós, que devemos fazer?” Ele disse-lhes: “A ninguém trateis com violência, não façais denúncias falsas e contentai-vos com o vosso soldo.”» (Lc 3,12-14)

As afirmações de João Baptista aos cobradores de impostos e aos soldados,  que não ordenam o abandono da profissão, mas a sua reforma ética, concretizam esta gramática do Reino vivido: conversão de práticas, não fuga do mundo.

4. Dissenso e sinodalidade: o conflito como aprendizagem

A assunção do dissenso, por sua vez, surge como condição de possibilidade de aprendizagem comunitária. Uma comunidade que hipervaloriza o consenso antecipado tende a produzir conformismo, invisibilizar minorias e bloquear a inovação. Numa ecologia emergente, o conflito não é uma anomalia a erradicar; é um sinal de atenção que convoca discernimento. Em termos sistémicos, o dissenso introduz perturbações não-lineares que obrigam o sistema a reorganizar-se, ampliando o seu espaço de estados possíveis; em termos eclesiais, cria um campo de palavra em que experiências situadas se tornam audíveis, gerando micro-relatos que resistem a mega-narrativas uniformizadoras. A conversação no Espírito — prática sinodal de escuta, tomada de palavra responsável, verificação comunitária e decisão — oferece a moldura ética e espiritual em que o dissenso se transforma em aprendizagem coletiva. O critério não é a pose de permanente contestação, mas a densidade das propostas alternativas, a sua conformidade ao Evangelho e a sua capacidade de gerar vida. Estruturas menos assimétricas e mais hospitaleiras ao conflito honesto tornam-se, assim, mecanismos instituintes: abrem espaço à variação, permitem a emergência de novas configurações de ministérios, carismas e práticas, e protegem a comunidade do recolhimento defensivo.

5. Duas cautelas hermenêuticas na transferência conceptual

Importa, todavia, salvaguardar duas cautelas. Primeira, a transferência conceptual das ciências da complexidade para a teologia requer uma hermenêutica cuidadosa. Não se trata de naturalizar a graça nem de reduzir a Igreja a fenómeno sociológico; trata-se de aprender com uma sintaxe analítica — a atenção ao mecanismo, à micro-interação, ao limiar, ao feedback — para melhor reconhecer os modos históricos do Espírito. Segunda, a ênfase nos processos emergentes não esvazia o dado sacramental; pelo contrário, releva a sua função gestativa. A Eucaristia, por exemplo, não é apenas ápice celebrativo, mas mecanismo instituinte de caridade que, reiterado, produz hábitos de oferta, serviço e reconciliação. A Palavra, proclamada e meditada, não é suplemento motivacional, mas dispositivo de convocação e discernimento que redesenha a atenção e reconfigura afetos e decisões. Em termos práticos, uma paróquia, um movimento, uma comunidade religiosa que identifiquem, apoiem e avaliem com rigor os seus gestos instituintes — pequenos grupos regulares de meditação da Palavra de Deus, catecumenados familiares, redes de vizinhança para o cuidado, economias solidárias de proximidade — estarão a deslocar recursos de manutenção para processos generativos.

6. Implicações para investigação e governo pastoral

Esta reconfiguração coloca exigências concretas aos agentes pastorais e aos investigadores. Do lado da investigação, pede-se uma Teologia Prática menos normativa e mais explanatória, capaz de nomear mecanismos, mapear padrões, explicitar condições de possibilidade e de sustentabilidade. Ferramentas como a etnografia teológica, a análise de redes, a teoria fundamentada em dados ou a modelização de dinâmicas participativas podem ser integradas criticamente, sem abdicar do discernimento teológico. Do lado da ação, pede-se governo pastoral entendido como curadoria de ecossistemas: criar condições, remover bloqueios, assegurar ritmos, articular níveis, decidir bem os “poucos necessários” que têm efeito multiplicador. A avaliação, por seu turno, desloca-se de métricas exclusivamente quantitativas para indicadores mistos que captem pertença e continuidade: frequência qualificada, densidade relacional, trajetórias vocacionais, efeitos de justiça no território. A formação ministerial, finalmente, deverá incluir competências de mediação de conflitos, artes de conversação e habilidades de organização comunitária, sem as quais a sinodalidade permanece mera retórica.

Conclusão: A figura do dom como forma de instituição

No horizonte teológico, a figura do dom preserva a afinidade mais profunda entre estes deslocamentos. A vida eclesial existe recebendo-se — não se auto-fundamenta. A gratuidade — dar graças porque se existe recebendo-se de um Outro — não é apenas atitude espiritual, é forma de instituição: organiza prioridades, relativiza a propriedade, redistribui autoridade, desarma projetos de auto-salvação. Viver o Reino, nesta chave, é deixar que o dom reconfigure o quotidiano: tempo, trabalho, cuidado, dinheiro, palavra, hospitalidade. É, também, aceitar que as comunidades cristãs se tornem laboratórios humildes de bem-comum nos interstícios da cidade, onde o Evangelho não se impõe como poder, mas se propõe como possibilidade de vida mais justa, reconciliada, em suma, mais humana!

Fontes:

Anderson, Ray S. An Emergent Theology for Emerging Churches. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2006.

Boff, Leonardo. Eclesiogênese: As comunidades de base reinventam a Igreja. 7.a ed. Petrópolis: Vozes, 2008.

Bunge, Mario. Emergence and Convergence: Qualitative Novelty and the Unity of Knowledge. Toronto: University of Toronto Press, 2003.

Clayton, Philip. Mind and Emergence: From Quantum to Consciousness. Oxford: Oxford University Press, 2004.

Congar, Yves. Verdadeira e falsa reforma na Igreja. São Paulo: Paulinas, 2015.

Debray, Régis. Introdução à mediologia. Lisboa: Instituto Piaget, 2000.

Dulles, Avery. Models of the Church. New York: Image, 2002.

Goldstein, Jeffrey. «Emergence as a Construct: History and Issues». Emergence 1, n.o 1 (1999): 49–72.

Guder, Darrell L., ed. Missional Church: A Vision for the Sending of the Church in North America. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1998.

Holland, John H. Emergence: From Chaos to Order. Redwood City, CA: Addison-Wesley, 1998.

International Theological Commission. «Synodality in the Life and Mission of the Church». Vatican City, 2018. https://www.vatican.va/roman_curia/congregations/cfaith/cti_documents/rc_cti_20180302_sinodalita_en.html.

Kauffman, Stuart. At Home in the Universe: The Search for the Laws of Self-Organization and Complexity. Oxford: Oxford University Press, 1995.

Ladd, George Eldon. The Presence of the Future: The Eschatology of Biblical Realism. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1974.

Lohfink, Gerhard. Como Jesus queria as comunidades? A dimensão social da fé cristã. São Paulo: Paulinas, 1986.

Lonergan, Bernard. Method in Theology. London: Darton, Longman & Todd, 1972.

Metz, Johann Baptist. Pobreza no Espírito. Lisboa: Paulinas, 1979.

Moltmann, Jürgen. The Church in the Power of the Spirit. Minneapolis, MN: Fortress Press, 1993.

Rancière, Jacques. A partilha do sensível: estética e política. Porto: Dafne, 2010.

Ricoeur, Paul. Soi-même comme un autre. Paris: Seuil, 1990.

Routhier, Gilles. «Ricominciare: la Chiesa come realtà emergente». Em La sapienza del cuore: omaggio a Enzo Bianchi, 316–25. Torino: Einaudi, 2013.

Taylor, Charles. Uma era secular. São Leopoldo: Unisinos, 2010.

Theobald, Christoph. Le christianisme comme style: une manière de faire de la théologie en postmodernité. Paris: Cerf, 2007.

Vivanco, Manuel. «Emergencia. Concepto y método». Cinta de Moebio, n.o 49 (2014): 31–38.

Wright, N. T. Jesus and the Victory of God. Minneapolis, MN: Fortress Press, 1996.